Em caso de saudade, quebre o silêncio…
Em caso de saudade, quebre o silêncio...
Na última segunda-feira, dia 1 de fevereiro, a minha mãe não chegou a acordar do sono profundo em que mergulhou nessa noite. Foi-se embora aos 75 anos (quase a completar 76) como ela sempre disse que gostaria de deixar a vida, no sono, em paz, sem sofrimento. Pelo menos é o que quero acreditar que tenha acontecido. Apazigua-me a alma a convicção de que a minha mãe, uma Mulher forte e Mãe dedicada, que tanto sofreu em vida, tenha tido uma morte pacífica e sem sofrimento.
A morte da minha mãe afastou-me deste cantinho, até hoje, dia em que resolvi cá voltar. Cheguei a pensar que nunca mais faria sentido escrever e partilhar aqui o meu dia-a-dia e as suas inerentes experiências, vivências e ralações. O que importa tudo isso quando se perde uma mãe? Perder a mãe é perder um bocado bem grande de nós, é imergir numa angústia e momentos de ataque de pânico terríveis, sem igual, para o resto da vida. Mas, por outro lado, não poderá a “Maria Mocha” ser uma preciosa ajuda para o que resta da minha vida sem mãe? Afinal, tem-no sido na minha vida pós-cancro… Ainda que desde há bem pouco tempo, a “Maria Mocha” faz-me bem, traz pessoas novas à minha vida, ajuda-me a perspectivar os problemas e a própria existência, liberta-me de alguns recalcamentos, enriquece-me...
Mas há um detalhe ou triste ironia em relação à “Maria Mocha”, que me tem transtornado um bocado depois da morte da minha mãe, e que é o facto de a minha mãe estar na essência desta minha iniciativa, desde logo pelo nome que escolhi. Começo a achar que nada na minha vida pode ser desvinculado da minha mãe…
Iniciei a “Maria Mocha” no dia 2 de janeiro deste ano, exactamente um mês antes do funeral da minha mãe, num tempo em que não se perspectivava a sua repentina morte. Nessa altura tive em mente outro nome para este blogue, um mais bonito, alusivo ao cancro de mama, esse “bicho” que marcou a minha vida da forma mais profunda possível, a partir dos 40 anos. No entanto, optei por “Maria Mocha”, um nome que não é tão bonito e apelativo mas que me leva à infância, às minhas raízes, que marcaram de forma indelével tudo o que sou hoje e das quais, para o bem e para o mal, nunca me consegui e conseguirei desvincular… e nem quero!
Ora, “Maria Mocha” foi uma criação da minha mãe, inspirada numa personagem da vida real, figura típica da terra, dos meus tempos de infância. Maria Mocha era, invariavelmente, a personagem principal das histórias que a minha mãe contava, principalmente à hora das refeições, para conseguir enfiar algumas colheradas de sopa pelas goelas abaixo da minha irmã, ela que, ao contrário de mim (mais anafadinha), parecia um pisco a comer. Eu sempre comi melhor, mas à custa da falta de apetite dela, ouvia as histórias da minha mãe a cada dia com redobrada atenção, em cada nova história da Maria Mocha à espera de novas peripécias e aventuras. A inspiração da minha mãe para as histórias que contava partia de desenhos na loiça estilo (só estilo!) Limoges, de cujas imagens vagamente me lembro de serem cenas rupestres, nas quais se incluía uma dama antiga, que os meus débeis conhecimentos do vestuário / indumentária históricos julgo remeterem para o século XIX. Esses pratos desirmanados em uso nessa altura na nossa casa tinham na borda essas imagens em tons vivos desde vermelho carmim a dourado, ao jeito da imagem que tenho aqui na foto de perfil e de capa (fica assim explicada a escolha!). A minha mãe apresentou-nos essa figura feminina como sendo a Maria Mocha. Nesta altura, a minha mãe, só preocupada em que a minha irmã comesse, não imaginava o interesse que eu tinha por aqueles momentos, nem o peso que eles tiveram inclusivamente para a promoção do meu gosto pelos livros e pela leitura, pela vida fora. Mais recentemente aqui, de forma pública, pela escrita também. Uma escrita despretensiosa, mas que não deixa de ser escrita, e que é feita com o coração carregando tudo o que é de mais profundo em mim, o meu âmago, a minha essência.
Assim, num certo sentido, aflora-se-me à mente hoje o cariz premonitório desta minha recente urgência em iniciar esta página na qual, a seu tempo, pretendia também falar das minhas recordações da infância obviamente impregnadas da memória minha mãe, da mesma forma que eu estarei toda a vida impregnada da minha mãe. E agora, mais do que nunca, algo me impele a escrever sobre ela, no intuito de, dessa forma, eternizá-la no meu coração e no dos seus netos que, espero, lerão mais cedo ou mais tarde estas minhas incursões pela escrita.
E como acredito que as memórias, assim como os retratos, ganham um valor muito maior e um outro sentido se os partilharmos, ver-me-ão por aqui ainda a falar muito da minha mãe.
Porque, em caso de saudade, devemos quebrar o silêncio...