Árvores e frutos da minha infância
Há acontecimentos e vivências da nossa infância que escolhemos esquecer e apagamos da memória (ou gostaríamos que isso acontecesse), e esses são importantes e estão na base da construção daquilo que é a nossa essência. Há também aquelas vivências que permanecem connosco durante toda a vida, e essas estão igualmente na fundação do nosso ser. Umas e outras, matizadas pelas pessoas que lhes conferiram matéria, são, para o bem e para o mal, os alicerces da nossa existência.
Há lembranças que mantemos ao longo da vida por vezes sem sabermos, uma vez que ficam adormecidas no mais recôndito do nosso ser durante muito tempo. Mas, a certa altura da nossa história, sem aviso, há um acontecimento, uma frase, um click que nos transporta novamente para lembranças que julgávamos esquecidas.
Curiosamente, hoje em dia a fruta não é um elemento suficientemente presente na minha alimentação (algo que tenho que tentar mudar, eu sei!). No entanto, algumas das memórias da infância que guardo com mais carinho envolvem, imagine-se, fruta. Figos, cerejas, maçãs, uvas, marmelos são alguns dos elementos que me remetem aos meus primeiros anos de vida. Importa dizer que relevantes foram também as árvores que produziam esses frutos, mas nenhuma subsiste hoje. Sucumbiram há muito à idade e às investidas do betão.
Nasci e cresci numa vila minhota, linda como só as terras e paisagens do Minho são… pelo menos para mim. Cresci livre, com poucos brinquedos mas com muita imaginação e criatividade, em comunhão com a natureza, de uma forma que os miúdos de hoje não vivenciam. De uma forma que os meus filhos pouco vivenciaram… Tinha que inventar as minhas próprias brincadeiras e encontrar os “brinquedos” que me faltavam no ambiente que me rodeava.
Uma das minhas brincadeiras preferidas era subir às árvores. Comigo lá, elas transformavam-se em casas, e os ramos eram as escadas e as mobílias, e as folhas eram muitas vezes o dinheiro que eu não tinha. Era lindo o mundo visto de cima das minhas árvores.
As primeiras árvores de que me lembro e que marcaram a minha infância encontravam-se ambas no quintal dos meus avós paternos, com quem eu passei muitas horas dos meus dias antes de frequentar a escola, enquanto o meu pai trabalhava e a minha mãe se ocupava das lides domésticas e das hortas.
Uma delas era uma macieira velhinha, pequena e carcomida (a esta eu não podia subir!) que dava umas maçãs pequeninas que eu adorava comer mesmo verdes, enquanto a minha mãe dizia invariavelmente que me iriam fazer mal à barriga.
A outra era uma figueira frondosa, mas também muito velha e com ramos pesados, que a certa altura dobraram e partiram a árvore ao meio. Uns anos depois da macieira, acabou esta também por perecer, ainda durante a minha juventude. A esta figueira eu subi inúmeras vezes, comi centenas dos seus figos e pendurei-me dezenas de vezes nos seus galhos robustos e dobrados pelo peso e pela idade. Hoje em dia, sempre que vejo uma figueira, lembro-me desta, a minha figueira. Lembro-me muito bem de um episódio que se passou junto dela, apesar de ser bem pequena quando aconteceu. Houve uma fase em que eu tive a mania de revirar os olhos. Fazia isso deliberadamente, ficando a parecer estrábica. Achava piada, vá-se lá entender!? Nesse dia, estando a apanhar figos com o meu pai e tendo ele avisado para eu não fazer aquilo aos olhos, numa atitude irreverente e ao mesmo tempo ingénua pensei ter escondido a cara da sua vista e persisti em revirar os olhos. Mas ele viu e deu-me logo ali um corretivo, não tanto por ter revirado os olhos, mas mais por lhe ter desobedecido. Nem tive tempo de antecipar a merecida bofetada a estalar na minha cara. Acho que nunca mais revirei os olhos… Este é um episódio que, pelo seu simbolismo e significado, me marcou e nunca me abandonou… Eu própria hoje tenho dificuldade em conceber que os meus filhos não aceitem um conselho ou uma ordem minha cujo objetivo seja protegê-los.
Havia também uma cerejeira altíssima, como era usual encontrar no norte, num quintal separado da casa dos meus avós por um caminho estreito e onde cultivavam batatas, favas, ervilhas, feijão verde e outros legumes . No norte permitia-se às arvores crescer em direção ao céu, encontrando-se assim muitas árvores exageradamente grandes, o que dificultava a apanha da fruta. A esta, por ser tão alta, raramente se colhiam as suas saborosas cerejas, que eu adoro. Era sempre o meu pai que subia à cerejeira com a ajuda de uma escada comprida e, como o fazia com pouca frequência, esse momento era especial, vivido com alegria, em que toda a família aguardava cá em baixo ansiosa para degustar as benditas cerejas. Comia-as com satisfação (ainda hoje é um dos meus frutos preferidos), mas com elas eu também brincava fazendo brincos de princesa, sempre que encontrava raminhos bifurcados com duas.
Os marmeleiros! Estas foram as árvores que mais vezes me hospedaram, mesmo pela adolescência fora. Eram dois ou três, num quintal onde hoje há um prédio e que a minha mãe cuidava e onde plantava os legumes para o nosso consumo próprio e alguns, poucos, para vender na praça à quinta-feira e ao sábado de manhã. Era para lá para cima que eu me esgueirava na esperança vã de que a minha mãe se esquecesse de me chamar para ajudar na horta. Foi lá em cima que eu li incontáveis livros. Eu sempre gostei de ler. Devagar, sem pressas, quase sempre com pena de chegar ao fim por não ter nenhum que ocupasse a seguir o lugar do anterior. Ainda hoje leio devagar e fazem-me confusão as pessoas que abocanham os livros e os devoram. Eu cá saboreava-os, mastigava-os, viajava através deles, sonhava. Muitas vezes, fiz tudo isto acomodada num marmeleiro. Havia um deles que tinha ramos mais confortáveis, ainda me lembro. Quanto aos marmelos, gostava e gosto de os comer crus, do seu sabor agre e da sua aspereza, mas também da marmelada e geleia que a minha mãe fazia e que hoje eu e a minha irmã também fazemos. É engraçado que ambas, como a minha mãe, guardamos um stock imenso destes doces, que acabam por atravessar todo o ciclo de vida anual dos marmelos. Quando, pelo outono, amadurecem os marmelos, ainda nós conservamos marmelada do ano anterior. A geleia não é tanto o meu forte, mas a minha irmã dominou a técnica da minha mãe na perfeição.
Das vinhas não tenho recordações muito boas, assim como das oliveiras, confesso. Fui desde cedo obrigada a ajudar nos trabalhos domésticos e do campo, e bem assim também nas vindimas e na apanha da azeitona. Tanto eu como a minha irmã, que foi sempre também, aliás, a minha companheira de “trabalho” e de brincadeiras. O que eu odiava a vindima! As vinhas altas do Minho, em latadas, obrigavam (e obrigam) a um esforço físico muito maior, a subir e descer escadotes milhentas vezes, a olhar para cima até ganhar dores no pescoço e tonturas. Foi numa vindima, com os meus 14 anos ou menos, que devido a mal-estar menstrual, um dia, inesperadamente perdi os sentidos e caí estatelada no chão. Se bem me lembro, esta foi uma das duas únicas vezes em que desmaiei, em toda a vida. A outra foi também na adolescência, sentada à mesa numa refeição, a (não) comer – consequência de uma dieta drástica e irracional.
Bem, por hoje chega de regresso ao passado. Na realidade, considero que carrego demasiado passado no meu presente…
(Só mesmo eu para falar de árvores e frutos, quando recordo a infância. Mas que foram importantes para mim, foram! Tão importantes que quero que a sua memória perdure para além de mim… que um dia os meus filhos leiam estas memórias aos seus próprios filhos…)