Blogue pessoal que aborda o universo feminino, maternidade, adolescência, resiliência, luta e superação do cancro, partilha de vivências, vida familiar e profissional... e alguma reflexão com humor à mistura.
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Quem se lembra da minha participação na rubrica One Smile a Day, da Chic'Ana? Aquele post que falava de uma criança que fez cocó nas cuecas... Essa, essa...
A propósito disso, e para cumprir o tema da segunda-feira, lembrei-me de um outro episódio engraçado, que conto hoje aqui.
Pouco mais velha do que quando fiz cocó nas cuecas, mas ainda pela idade da inocência, descobri um livro didático sobre sexo lá em casa na estante dos meus pais. Aquilo passou a ter sobre mim um fascínio terrível. Sempre fui uma rapariga curiosa sobre o assunto sexo anatomia humana e assim, vá.
Como se não bastasse ir de vez em quando folhear o livro às escondidas com aquela excitação única do fruto proibido, ainda me deu na cabeça ir, às escondidas (vejam lá a inocência!), mostrar ao vizinho mais ou menos da minha idade. Tão nova e já tão seletiva nas "amizades" e nas partilhas!
Escusado será dizer que a minha irmã, na primeira oportunidade (fazíamos isso normalmente na primeira zanga que tínhamos pós-conhecimento da infração de uma de nós) foi contar aos meus pais e ainda levei uma bofetada do meu pai, por insistência da minha mãe. Lembro-me bem que o meu pai não viu mal nenhum naquilo mas deu-ma por encomenda dela, que eles educavam em uníssono, como deve ser e vem nos livros.
O livro chamava-se Oral Love, mas era, como disse, didático. Com imagens, mas nada explícito. Título sugestivo, hã? Escrito em inglês, era uma relíquia raramente encontrada nas casas de família à época, que naquela altura (início dos anos 80, apesar de haver alguma emancipação), suspeito que não deveria haver muitos curiosos e praticantes da arte do oral... Coitadas das senhoras e das pessoas em geral...
Ainda conservo o livro lá na minha casa no Minho (está na estante ao lado dos livros na língua inglesa). Guardei-o de recordação. Sim, porque já não há nada ali (no livro) que me surpreenda assim tanto, no que diz respeito a este assunto em particular, como surpreendia os olhos curiosos e ávidos de conhecimento de uma miúda de pouco mais de 10 anos.
E pronto, esta é a pérola da infância que deixo por cá hoje. Confesso que a minha esperança é que, com este post, a minha imagem fique associada à de uma ninfomaníaca libertina sexualmente precoce, fazendo assim esquecer a porca cagada.
Há acontecimentos e vivências da nossa infância que escolhemos esquecer e apagamos da memória (ou gostaríamos que isso acontecesse), e esses são importantes e estão na base da construção daquilo que é a nossa essência. Há também aquelas vivências que permanecem connosco durante toda a vida, e essas estão igualmente na fundação do nosso ser. Umas e outras, matizadas pelas pessoas que lhes conferiram matéria, são, para o bem e para o mal, os alicerces da nossa existência.
Há lembranças que mantemos ao longo da vida por vezes sem sabermos, uma vez que ficam adormecidas no mais recôndito do nosso ser durante muito tempo. Mas, a certa altura da nossa história, sem aviso, há um acontecimento, uma frase, um click que nos transporta novamente para lembranças que julgávamos esquecidas.
Curiosamente, hoje em dia a fruta não é um elemento suficientemente presente na minha alimentação (algo que tenho que tentar mudar, eu sei!). No entanto, algumas das memórias da infância que guardo com mais carinho envolvem, imagine-se, fruta. Figos, cerejas, maçãs, uvas, marmelos são alguns dos elementos que me remetem aos meus primeiros anos de vida. Importa dizer que relevantes foram também as árvores que produziam esses frutos, mas nenhuma subsiste hoje. Sucumbiram há muito à idade e às investidas do betão.
Nasci e cresci numa vila minhota, linda como só as terras e paisagens do Minho são… pelo menos para mim. Cresci livre, com poucos brinquedos mas com muita imaginação e criatividade, em comunhão com a natureza, de uma forma que os miúdos de hoje não vivenciam. De uma forma que os meus filhos pouco vivenciaram… Tinha que inventar as minhas próprias brincadeiras e encontrar os “brinquedos” que me faltavam no ambiente que me rodeava.
Uma das minhas brincadeiras preferidas era subir às árvores. Comigo lá, elas transformavam-se em casas, e os ramos eram as escadas e as mobílias, e as folhas eram muitas vezes o dinheiro que eu não tinha. Era lindo o mundo visto de cima das minhas árvores.
As primeiras árvores de que me lembro e que marcaram a minha infância encontravam-se ambas no quintal dos meus avós paternos, com quem eu passei muitas horas dos meus dias antes de frequentar a escola, enquanto o meu pai trabalhava e a minha mãe se ocupava das lides domésticas e das hortas.
Uma delas era uma macieira velhinha, pequena e carcomida (a esta eu não podia subir!) que dava umas maçãs pequeninas que eu adorava comer mesmo verdes, enquanto a minha mãe dizia invariavelmente que me iriam fazer mal à barriga.
A outra era uma figueira frondosa, mas também muito velha e com ramos pesados, que a certa altura dobraram e partiram a árvore ao meio. Uns anos depois da macieira, acabou esta também por perecer, ainda durante a minha juventude. A esta figueira eu subi inúmeras vezes, comi centenas dos seus figos e pendurei-me dezenas de vezes nos seus galhos robustos e dobrados pelo peso e pela idade. Hoje em dia, sempre que vejo uma figueira, lembro-me desta, a minha figueira. Lembro-me muito bem de um episódio que se passou junto dela, apesar de ser bem pequena quando aconteceu. Houve uma fase em que eu tive a mania de revirar os olhos. Fazia isso deliberadamente, ficando a parecer estrábica. Achava piada, vá-se lá entender!? Nesse dia, estando a apanhar figos com o meu pai e tendo ele avisado para eu não fazer aquilo aos olhos, numa atitude irreverente e ao mesmo tempo ingénua pensei ter escondido a cara da sua vista e persisti em revirar os olhos. Mas ele viu e deu-me logo ali um corretivo, não tanto por ter revirado os olhos, mas mais por lhe ter desobedecido. Nem tive tempo de antecipar a merecida bofetada a estalar na minha cara. Acho que nunca mais revirei os olhos… Este é um episódio que, pelo seu simbolismo e significado, me marcou e nunca me abandonou… Eu própria hoje tenho dificuldade em conceber que os meus filhos não aceitem um conselho ou uma ordem minha cujo objetivo seja protegê-los.
Havia também uma cerejeira altíssima, como era usual encontrar no norte, num quintal separado da casa dos meus avós por um caminho estreito e onde cultivavam batatas, favas, ervilhas, feijão verde e outros legumes . No norte permitia-se às arvores crescer em direção ao céu, encontrando-se assim muitas árvores exageradamente grandes, o que dificultava a apanha da fruta. A esta, por ser tão alta, raramente se colhiam as suas saborosas cerejas, que eu adoro. Era sempre o meu pai que subia à cerejeira com a ajuda de uma escada comprida e, como o fazia com pouca frequência, esse momento era especial, vivido com alegria, em que toda a família aguardava cá em baixo ansiosa para degustar as benditas cerejas. Comia-as com satisfação (ainda hoje é um dos meus frutos preferidos), mas com elas eu também brincava fazendo brincos de princesa, sempre que encontrava raminhos bifurcados com duas.
Os marmeleiros! Estas foram as árvores que mais vezes me hospedaram, mesmo pela adolescência fora. Eram dois ou três, num quintal onde hoje há um prédio e que a minha mãe cuidava e onde plantava os legumes para o nosso consumo próprio e alguns, poucos, para vender na praça à quinta-feira e ao sábado de manhã. Era para lá para cima que eu me esgueirava na esperança vã de que a minha mãe se esquecesse de me chamar para ajudar na horta. Foi lá em cima que eu li incontáveis livros. Eu sempre gostei de ler. Devagar, sem pressas, quase sempre com pena de chegar ao fim por não ter nenhum que ocupasse a seguir o lugar do anterior. Ainda hoje leio devagar e fazem-me confusão as pessoas que abocanham os livros e os devoram. Eu cá saboreava-os, mastigava-os, viajava através deles, sonhava. Muitas vezes, fiz tudo isto acomodada num marmeleiro. Havia um deles que tinha ramos mais confortáveis, ainda me lembro. Quanto aos marmelos, gostava e gosto de os comer crus, do seu sabor agre e da sua aspereza, mas também da marmelada e geleia que a minha mãe fazia e que hoje eu e a minha irmã também fazemos. É engraçado que ambas, como a minha mãe, guardamos um stock imenso destes doces, que acabam por atravessar todo o ciclo de vida anual dos marmelos. Quando, pelo outono, amadurecem os marmelos, ainda nós conservamos marmelada do ano anterior. A geleia não é tanto o meu forte, mas a minha irmã dominou a técnica da minha mãe na perfeição.
Das vinhas não tenho recordações muito boas, assim como das oliveiras, confesso. Fui desde cedo obrigada a ajudar nos trabalhos domésticos e do campo, e bem assim também nas vindimas e na apanha da azeitona. Tanto eu como a minha irmã, que foi sempre também, aliás, a minha companheira de “trabalho” e de brincadeiras. O que eu odiava a vindima! As vinhas altas do Minho, em latadas, obrigavam (e obrigam) a um esforço físico muito maior, a subir e descer escadotes milhentas vezes, a olhar para cima até ganhar dores no pescoço e tonturas. Foi numa vindima, com os meus 14 anos ou menos, que devido a mal-estar menstrual, um dia, inesperadamente perdi os sentidos e caí estatelada no chão. Se bem me lembro, esta foi uma das duas únicas vezes em que desmaiei, em toda a vida. A outra foi também na adolescência, sentada à mesa numa refeição, a (não) comer – consequência de uma dieta drástica e irracional.
Bem, por hoje chega de regresso ao passado. Na realidade, considero que carrego demasiado passado no meu presente…
(Só mesmo eu para falar de árvores e frutos, quando recordo a infância. Mas que foram importantes para mim, foram! Tão importantes que quero que a sua memória perdure para além de mim… que um dia os meus filhos leiam estas memórias aos seus próprios filhos…)
Na última segunda-feira, dia 1 de fevereiro, a minha mãe não chegou a acordar do sono profundo em que mergulhou nessa noite. Foi-se embora aos 75 anos (quase a completar 76) como ela sempre disse que gostaria de deixar a vida, no sono, em paz, sem sofrimento. Pelo menos é o que quero acreditar que tenha acontecido. Apazigua-me a alma a convicção de que a minha mãe, uma Mulher forte e Mãe dedicada, que tanto sofreu em vida, tenha tido uma morte pacífica e sem sofrimento.
A morte da minha mãe afastou-me deste cantinho, até hoje, dia em que resolvi cá voltar. Cheguei a pensar que nunca mais faria sentido escrever e partilhar aqui o meu dia-a-dia e as suas inerentes experiências, vivências e ralações. O que importa tudo isso quando se perde uma mãe? Perder a mãe é perder um bocado bem grande de nós, é imergir numa angústia e momentos de ataque de pânico terríveis, sem igual, para o resto da vida. Mas, por outro lado, não poderá a “Maria Mocha” ser uma preciosa ajuda para o que resta da minha vida sem mãe? Afinal, tem-no sido na minha vida pós-cancro… Ainda que desde há bem pouco tempo, a “Maria Mocha” faz-me bem, traz pessoas novas à minha vida, ajuda-me a perspectivar os problemas e a própria existência, liberta-me de alguns recalcamentos, enriquece-me...
Mas há um detalhe ou triste ironia em relação à “Maria Mocha”, que me tem transtornado um bocado depois da morte da minha mãe, e que é o facto de a minha mãe estar na essência desta minha iniciativa, desde logo pelo nome que escolhi. Começo a achar que nada na minha vida pode ser desvinculado da minha mãe…
Iniciei a “Maria Mocha” no dia 2 de janeiro deste ano, exactamente um mês antes do funeral da minha mãe, num tempo em que não se perspectivava a sua repentina morte. Nessa altura tive em mente outro nome para este blogue, um mais bonito, alusivo ao cancro de mama, esse “bicho” que marcou a minha vida da forma mais profunda possível, a partir dos 40 anos. No entanto, optei por “Maria Mocha”, um nome que não é tão bonito e apelativo mas que me leva à infância, às minhas raízes, que marcaram de forma indelével tudo o que sou hoje e das quais, para o bem e para o mal, nunca me consegui e conseguirei desvincular… e nem quero!
Ora, “Maria Mocha” foi uma criação da minha mãe, inspirada numa personagem da vida real, figura típica da terra, dos meus tempos de infância. Maria Mocha era, invariavelmente, a personagem principal das histórias que a minha mãe contava, principalmente à hora das refeições, para conseguir enfiar algumas colheradas de sopa pelas goelas abaixo da minha irmã, ela que, ao contrário de mim (mais anafadinha), parecia um pisco a comer. Eu sempre comi melhor, mas à custa da falta de apetite dela, ouvia as histórias da minha mãe a cada dia com redobrada atenção, em cada nova história da Maria Mocha à espera de novas peripécias e aventuras. A inspiração da minha mãe para as histórias que contava partia de desenhos na loiça estilo (só estilo!) Limoges, de cujas imagens vagamente me lembro de serem cenas rupestres, nas quais se incluía uma dama antiga, que os meus débeis conhecimentos do vestuário / indumentária históricos julgo remeterem para o século XIX. Esses pratos desirmanados em uso nessa altura na nossa casa tinham na borda essas imagens em tons vivos desde vermelho carmim a dourado, ao jeito da imagem que tenho aqui na foto de perfil e de capa (fica assim explicada a escolha!). A minha mãe apresentou-nos essa figura feminina como sendo a Maria Mocha. Nesta altura, a minha mãe, só preocupada em que a minha irmã comesse, não imaginava o interesse que eu tinha por aqueles momentos, nem o peso que eles tiveram inclusivamente para a promoção do meu gosto pelos livros e pela leitura, pela vida fora. Mais recentemente aqui, de forma pública, pela escrita também. Uma escrita despretensiosa, mas que não deixa de ser escrita, e que é feita com o coração carregando tudo o que é de mais profundo em mim, o meu âmago, a minha essência.
Assim, num certo sentido, aflora-se-me à mente hoje o cariz premonitório desta minha recente urgência em iniciar esta página na qual, a seu tempo, pretendia também falar das minhas recordações da infância obviamente impregnadas da memória minha mãe, da mesma forma que eu estarei toda a vida impregnada da minha mãe. E agora, mais do que nunca, algo me impele a escrever sobre ela, no intuito de, dessa forma, eternizá-la no meu coração e no dos seus netos que, espero, lerão mais cedo ou mais tarde estas minhas incursões pela escrita. E como acredito que as memórias, assim como os retratos, ganham um valor muito maior e um outro sentido se os partilharmos, ver-me-ão por aqui ainda a falar muito da minha mãe. Porque, em caso de saudade, devemos quebrar o silêncio...
DIREITOS DE AUTOR (Decreto-Lei n.º 63/85 com as posteriores alterações)
Maria Mocha é o pseudónimo de uma mulher que, de vez em quando, gosta de deixar os pensamentos fluir pela escrita, uma escrita despretensiosa, mas plena dos sentimentos e emoções com que enfrenta a vida. Assim, as criações intelectuais da Maria Mocha publicadas (textos, fotos) têm direitos de autor que a mesma quer ver respeitados e protegidos. Eventuais créditos de textos ou fotos de outros autores serão mencionados.
Aos leitores da Maria Mocha um apelo: leiam, reflitam sobre o que leram, comentem, mas não utilizem indevidamente conteúdos deste blog sem autorização prévia da autora. Obrigada.